Oncologista pediátrica e fundadora de um dos maiores hospitais especializados em câncer infantil no país – o Instituto Boldrini, em Campinas (SP) - a médica Silvia Brandalise abriu nesta segunda-feira (25) o Seminário sobre Agrotóxicos nos Alimentos, na Água e na Saúde do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC).
Engajada e
ativista, ela inaugurou no ano passado o maior centro de pesquisa oncológica
infantil da América Latina e tem feito da luta pelo controle dos agrotóxicos no
Brasil uma bandeira.
Em entrevista
exclusiva à NSC, a médica falou sobre a relação entre os defensivos agrícolas e
o câncer nas crianças, comenta a legislação brasileira e alerta para a
necessidade de controle.
Entrevista:
Silvia Brandalise
A senhora
trabalha com câncer infantil, e abriu o encontro do Ministério Publico de SC
sobre a interação entre agrotóxicos e saúde. Qual é essa relação?
A exposição de
qualquer ser vivo, principalmente a criança, que está em franca etapa de
crescimento, provoca dano no DNA, nos cromossomos. Precisa ser reparado,
algumas vezes (o organismo) não consegue, e vira um câncer. Um aspecto
importante na criança é que ela já sofre esse dano no momento da concepção. O
espermatozoide do pai já pode vir danificado por exposição a inseticidas, e
será transmitido para a criança, gerando as mutações genéticas que vão resultar
em câncer ou malformação congênita. Quanto mais cedo ocorre essa mutação, nos
primeiros meses, semanas de vida, a relação é muito mais estreita com
malformação congênita. Depois do segundo, terceiro mês, (mais) relacionado com
o câncer na criança.
Essas mutações
a que a senhora se refere, e os casos de câncer, têm aumentado?
Esse dado é
inquestionável nos EUA e na União Europeia. O aumento do câncer da criança é
uma linha ascendente e contínua, entendendo-se crianças até 19 anos de idade.
Desses cânceres, o tumor cerebral é o que tem um grande impacto. Mas no
adolescente, até 29, 30 anos, também existe um aumento crescente de tumores de
testículo e endócrinos.
De que maneira
ocorre essa exposição aos agrotóxicos?
Já tem se
provado, com dois grandes trabalhos na Europa, na Dinamarca e na Itália,
durante um período de 40 anos de observação, que é a exposição do pai em seu
ambiente de trabalho, da mãe, durante a gestação e após o nascimento da
criança. O aspecto fundamental desses estudos europeus, publicados agora em
2019, é que a exposição do pai ou da mãe no período pré-concepção e durante a
gestação, (provoca) altos índices relacionados com o aparecimento de câncer no
sistema nervoso e leucemia mieloide.
São pessoas que
trabalham diretamente com defensivos agrícolas?
Não, pegaram
uma população que sabidamente tinha uma relação com a indústria de tintas e
gráficas. Pegaram esses dois modelos para uniformizar. Não trabalhavam em
lavouras. Na Itália, pegaram no país inteiro 22 regiões que se caracterizavam
por alto nível de contaminação ambiental por indústrias. O que observaram foi
uma maior incidência de tumor cerebral e leucemia mieloide aguda. Ou seja, não
tem nenhuma dúvida de que a exposição, quer em ambiente de trabalho, quer em
ambientes contaminados pela indústria, com metais pesados, derivados de benzeno
e outros resíduos químicos, está relacionada não só com o câncer da criança e
do adolescente, como também com distúrbio neurológico, autismo, déficit de
aprendizado nos primeiros anos de vida. E, não menos importante, são também
esses poluentes e contaminantes ambientais relacionados a distúrbios
endócrinos, como obesidade, infertilidade. Ou seja, a natureza é para ser
respeitada. O lençol freático vai levar aos nossos alimentos e à nossa água
todos esses contaminantes.
A senhora citou
os estudos feitos na Europa, mas sabe-se que eles têm uma legislação muito mais
restritiva que a nossa. O que isso significa para o Brasil?
O alerta é que
nós brasileiros não somos diferentes dos europeus e dos americanos. Devemos
aprender o que se mostrou tóxico e proibitivo nesses países, e deve ser banido.
O Brasil não pode ser quintal de produtos proibidos. O Brasil importa
inseticidas já sabidamente banidos na União Europeia e nos Estados Unidos. A
gente vê portarias, legislações frouxas, que permitem entrar no Brasil qualquer
coisa. Neste primeiro trimestre de 2019 (tivemos) 1,23 registro de novo
inseticida por dia. É catastrófico. A política da segurança ambiental deve ser
baseada no princípio da precaução. Não se pode jogar neste país produtos já
proibidos, sabidamente publicados como carcinogênicos. É extremamente sério.
Esses níveis de
contaminação podem vir da alimentação?
Somos o que a
gente come, bebe, respira. Todo contaminante vem do ar, do alimento, da água.
O MPSC divulgou
um estudo mostrando que há traços de agrotóxicos na água consumida por 22
cidades catarinenses. Os níveis não ultrapassam os limites do Ministério da
Saúde. Essa exposição preocupa?
Do ponto de
vista de níveis aceitáveis, o Brasil tem níveis em média 5 mil, 3 mil vezes
maior do que Europa e EUA. Será que o brasileiro tolera mais veneno que o
europeu? A exposição crônica tem efeitos cumulativos. Veneno é veneno em
qualquer época da vida, e não podemos aceitar em qualquer quantidade.
O Centro
Infantil Boldrini participa de estudos internacionais sobre as relações entre o
câncer e os agrotóxicos. Já há algum resultado preliminar?
Fomos
convidados a integrar um grupo internacional chamado Consórcio Internacional do
Câncer da Criança, com parceria da Organização Mundial da Saúde, da Agência
Internacional de Câncer, da França, e é coordenado por um grupo da Austrália.
Vamos juntar nesse estudo 1 milhão de gestantes e um milhão de nenéns. O Brasil
é representado por Campinas. As gestantes são submetidas a dois questionários
internacionalmente validados durante a gravidez, e mais dois depois do
nascimento da criança, com coletas de sangue da mãe e da criança, e
acompanhamento pelo período de 18 anos para ver quantos desenvolvem
malformação, cancer, quantos terão aplasia de medula, leucopenias. No final de
2018, início de 2019, saiu a publicação inicial desse estudo. O resultado
começa a apontar para grupos parciais, da França e da Inglaterra, a questão da
exposição a derivados de benzeno. Já estamos nesse estudo há seis, sete anos.
Dar um diagnóstico de câncer numa criança é um sofrimento atroz. O tratamento é
duro, prolongado, e o que causa bastante pesar é saber que talvez seja o preço
que as crianças estão pagando pela contaminação ambiental . Nossa sociedade, as
entidades científicas, os órgãos públicos, deveríamos ter como princípio maior
o respeito à vida, o respeito à saúde da criança. Nada, nenhum dinheiro, nenhum
lucro justifica matarmos as crianças com esses matadores invisíveis, com
inseticidas e poluentes.
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